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Acautelar ou satisfazer? O “velho problema” no Novo CPC*

Para falarmos do futuro que se avizinha, indispensável rememorarmos rapidamente algo do passado, eis que este construiu nosso presente e certamente se projeta no porvir. Ainda que apego excessivo ao passado seja um erro arrematado, ignorá-lo também o é, como acentua a velha, mais oportuna, observação de STERNBERG: “El que quiera hacer Derecho sin Historia, no es un jurista, ni siquera un utopista; no traera a la vida espiritu de ordenacion social conciente, sino mero desorden y destruccion”[1].

Antes do advento da tutela antecipada (lei no 8.952/1994), mesmo depois dela e até a inserção do § 7ono artigo 273 do CPC/1973 (lei no 10.444/2002), muito se debateu sobre a diferenciação prática, com inegável reflexo jurídico, entre satisfazer a pretensão por antecipação e acautelar sua satisfação futura.

A concepção clássica sobre as cautelares tinha como nota de corte fundamental deste tipo de tutela o resguardo da tutela definitiva, preservar o contexto processual judicializado para operação futura da tutela definitiva.

No particular, expressiva a compreensão de CARNELUTTI: “A duração do processo é um de seus defeitos humanos, que mesmo quando caiba aperfeiçoar a regulação do mesmo, não poderão jamais ser eliminados totalmente. (…). Não há de se estranhar, portanto, que a prevenção desses danos tenha determinado medidas encaminhadas a um arranjo (sistemazione) provisório da situação de que brotou ou de que está para surgir o litígio, e isso, antes de que o processo jurisdicional ou executivo comecem ou enquanto recorrerem seu iter.”[2]

A tutela cautelar servia então como instrumento do instrumento, instrumentalidade qualificada, ou seja, elevada ao quadrado[3], haja vista a necessidade de assegurar que a tutela definitiva tenha sobre o que atuar, evitando-se o mal de uma medicina:“longamente elaborada para um doente já morto.”[4].

Verdade seja, tal compreensão se situava nas franjas da concepção ideológica sobre o processo de conhecimento, destinado à certificação do direito, pautado na ordinarização procedimental e na plenitude cognitiva, arredio via de regra ao exercício do império[5].

Nada obstante, esse arranjo ideal não acomodava às necessidades práticas impostas pelo tempo do processo e seus danos marginais, tanto que CALAMANDREI inseria na tutela cautelar a antecipação dos procedimentos decisórios[6], enquanto CARNELUTTI dividia os processos cautelares em inibitórios, restituitórios e antecipatórios[7].

Por conseguinte, a realidade impôs a expansão das tutelas cautelares, não sem espanto de parte da doutrina[8], passando-se a falar de provimentos provisórios e sumários coloridos pela urgência em satisfazer, as ditas cautelares satisfativas.

No ponto, inegável o mérito da doutrina de OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA DA SILVA: “O equívoco em que incide a doutrina, de tratar tudo o que é provisório como cautelar, identificando a satisfatividade com a definitividade do julgamento final do mérito, presta homenagem ao mais requintado normativismo jurídico, para o qual as consequências fáticas – mesmo sendo definitivas e satisfativas do interesse da parte – não “satisfazem juridicamente” a pretensão.”[9].

Entrementes, como o sistema não permitia, regra geral, a possibilidade de uma tutela provisória do direito, passou-se a manejar o procedimento cautelar para tal finalidade (desvirtuando-o, para alguns).

Erige-se então a diferenciação entre acautelar o direito, colocando fora de risco sua atuação futura, e satisfazê-lo, mediante a possibilidade de sua fruição durante o andamento do processo. Enquanto a primeira finalidade poderia ser buscada na via cautelar, a segunda extravasava seus estreitos limites.

Portanto, a distinção entre as finalidades de acautelar ou satisfazer, além de linguística (obviamente), servia, para grande parte da doutrina, como chave de acesso ao processo cautelar.

A tendência tem retrato na jurisprudência da época:

“PROCESSUAL CIVIL. POLICIAL MILITAR REFORMADO. INDENIZAÇÃO DE REPRESENTAÇÃO. RESTABELECIMENTO. MEDIDA CAUTELAR SATISFATIVA. 1. A competência do juízo de primeiro grau para conceder Medida Cautelar deve ser afastada quando se busca atacar ato de autoridade, impugnável pela via do Mandado de Segurança perante o Tribunal de Justiça. 2. A medida cautelar tem caráter nitidamente assecuratório, visando resguardar o perecimento do direito pelo decurso do tempo, sob pena de torná-lo inóquo; somente em casos excepcionais, a jurisprudência reconhece o caráter satisfativo da Medida Cautelar 3. Recurso conhecido e provido.” (STJ, REsp 210.664/CE, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, QUINTA TURMA, julgado em 02/09/1999, DJ 27/09/1999, p. 113).

Com a incorporação da tutela antecipada ao ordenamento processual (artigo 273 doCPC), a necessidade da distinção persistiu na medida em que servia de fronteira entre os pedidos cautelares e as antecipações de tutela. Sob o argumento de obedecerem requisitos diferentes para concessão (fumus boni iuris e periculum in mora versus verossimilhança e dano irreparável ou de difícil reparação[10]), bem como existir procedimento específico para tutela cautelar (antecedente e incidental), qualquer análise da tutela de urgência principiava sobre a adequação do pleito formulado.

Aliás, visando colocar cobro na discussão, numa adequada visão da instrumentalidade (diga-se), o legislador reformista inseriu o § 7ono artigo 273 doCPC/1973, estabelecendo, por assim dizer, a fungibilidade entre os provimentos cautelares e de urgência.

Consequentemente, a distinção perdeu linhas de força, ainda que no plano da cognição, no verificar os pressupostos respectivos (fumus boni iuris e periculum in mora e/ou verossimilhança e dano irreparável ou de difícil reparação), seja considerada na análise da tutela de urgência postulada.

Ainda assim, caminhava-se para o sincretismo entre a medida cautelar e a tutela antecipada, não sendo incomum provimentos liminares que conjugam determinações de ordem cautelar com outras de antecipação de tutela do direito.

Qual nada, o Novo Código de Processo Civil andou em sentido oposto, marcando diferenças entre a tutela cautelar e a antecipada, na perspectiva da finalidade acautelatória ou satisfatória (artigos 303 e 305 do Novo CPC).

Conquanto tenha predisposto a tutela cautelar e antecipada conjuntamente sob o dístico da urgência, em contraponto à tutela provisória timbrada na evidência, bem como mantido a fungibilidade entre as tutelas (artigo 303, parágrafo único, do NovoCPC), o fato é que o Código estabeleceu uma diferença procedimental para os pedidos respectivos quando realizados de forma antecedente (Capítulos II e III do Título II do Livro V da Parte Geral).

Mais que isso, o Código, em uma de suas maiores inovações, estabeleceu a possibilidade da tutela antecipada requerida em caráter antecedente tornar-se estável (artigo 304 do Novo CPC), prescindindo do processo dito principal, virtualidade não reconhecida à tutela cautelar. Afora ainda ser a irreversibilidade do provimento uma limitação exclusiva da tutela antecipada (artigo 300, § 3o, do NovoCPC).

Logo, o Código, pelo menos nos pedidos antecedentes, demarcou e distinguiu o campo de atuação da tutela cautelar e da tutela de evidência, tanto estruturação do procedimento, quanto na função atribuída aos institutos, como finalmente nas suas consequências.

De fato, existem situações limítrofes entre o que seja tutela propriamente cautelar ou tutela antecipada, as quais não se deixam aprisionar num espectro intencionalmente esquemático. Na realidade objetiva a passagem de uma a outra se faz, com frequência, por graus insensíveis.

Ainda que assim o seja, o Código determina tal diferenciação quando as tutelas forem postuladas em caráter antecedente, razão porque, na análise de tais medidas prévias, deverá o juiz verificar a natureza da tutela postulada. Não se trata, como visto, de uma questão meramente formal, da estrutura do procedimento a ser seguido, senão também das consequências do provimento.

Aliás, proposta tutela antecipada em caráter antecedente, acaso o juiz considere que o pedido tem natureza acautelatória e determine sua adequação para tutela cautelar (ou o reverso), cabível será o recurso de agravo de instrumento.

É que, nessa hipótese, a determinação de conversão da tutela antecipada para cautelar importa na negação implícita do pedido antecipatório, razão porque se enquadrada na situação estatuída no artigo 1.015, inciso I, do Novo CPC, ou seja, trata-se de uma decisão interlocutória versando sobre tutela provisória.

Certo ou errado, bem ou mal, não nos cabe agora assentar, mas apenas constatar: o Novo CPC reaviva a distinção entre a tutela cautelar e a tutela antecipada, que passa a ser tópico indispensável na análise de qualquer tutela de urgência pedida em caráter antecedente.


[1] STERNBERG, Theodoro. Introducción a la ciencia del derecho. Trad. José Rovira y Ermengol. 2. Ed. Barcelona: Labor, 1930. P. 32. Tão oportuna quanto, posto mais recente, é a lição de TUCCI e AZEVEDO, em trecho final de conclusão: “Esta, enfim, a função da História: fornecer à consciência do homem um material abundante, inesgotável, utilíssimo à construção de conhecimento, de seu juízo, de sua vontade.”(TUCCI, José Rogério Cruz e; AZEVEDO, Luiz Carlos de. Lições de história do processo civil romano. São Paulo: RT, 1996. p. 19/22).

[2] CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil: introdução e função do processo civil. Traduzido por Hiltomar Martins Oliveira. São Paulo: Classic Book, 2000. V.1, p. 322. Outrossim: “O fim é sempre o de evitar que a atuação de uma possível vontade da lei se veja impedida ou dificultada, no tempo próprio, por um fato ocorrido antes de sua certificação.” (CHIOVENDA, Giuseppe.Instituições de Direito Processual Civil. Anotações de Enrico Tullio Liebman. Traduzido por Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1998. § 11).

[3] CALAMANDREI, Piero. Introdução ao estudo sistemático dos procedimentos cautelares. Tradução de Carla Roberta Andreasi Bassi. Campinas: Servanda, 2000. P. 42

[4] Ibidem, p. 39.

[5] SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Jurisdição e execução: na tradição romano-canônica. 2. Ed. Rev. E atual. São Paulo: RT, 1997.

[6] CALAMANDREI, op. Cit., p. 64 e seguintes.

[7] CARNELUTTI, Francesco. Diritto e processo. Napoli: Morano, 1958.

[8] LIEBMAN, Enrico Tullio. Per un nuovo codice di procedura civile. In Rivista di diritto processuale/37. Pádua, Cedam, 1982. P. 28.

[9] SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de processo civil: processo cautelar; tutela de urgência. 3. Ed. Rev., atual., e ampl. São Paulo: RT, 2000. v. 3, p. 48.

[10] “Ao que tudo indica, porém, estamos na iminência de inverter o emprego de dois conceitos, teimando em conjugar o pressuposto do periculum in mora com as cautelares, para ligar o ‘receio de dano irreparável’ às antecipações satisfativas quando eles, para manifestarem-se fiéis às suas origens históricas e dogmáticas, deveriam inverter as respectivas posições, passando a periculum in mora determinar execução urgente, reservando-se a alegação de ‘receio de dano irreparável’ para a tutela cautelar.” (SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de Processo Civil. 4. Ed. Rev. E atual. São Paulo: RT, 1998. V. 1, p. 141).

* Texto ampliado. Versão mais sintética publicada no portal Jota:http://jota.info/acautelar-ou-satisfazerovelho-problema-no-novo-cpc