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Princípios no novo CPC, ofensa reflexa à Constituição: clivagem necessária

Em princípio, não tenho posição firmada sobre o reconhecimento formal pelo projeto de Novo CPC[1] de princípios e garantias fundamentais do processo civil, como predispostos a partir do seu artigo 1o.

Aliás, meu entendimento gravita naquelas percepções ordinárias, ora assentando a superfluidade na especificação dos princípios, com seu potencial engessamento, ora chancelando sua incorporação expressa, com ratificação de sua força normativa.

A obviedade, neste texto não se pretende fixar a natureza jurídica ou a função dos princípios jurídicos — tarefa que reivindica monografia específica –, mas apenas recolher a compreensão que reputo dominante, os princípios condicionam, vitalizam, otimizam e dinamizam o ordenamento jurídico.

A assertiva, grafada com tintas fortes e indeléveis, tal como formulada, orienta ilação positiva no tocante a reedição dos princípios constitucionais no projeto de Novo CPC.

Nada obstante, e esse é o contraponto que faço, a incorporação expressa de princípios constitucionais no Novo CPC embainha, quando menos, uma consequência de ordem prático-jurídica a merecer atenção.

Numa observação absolutamente empírica, mas que orça com a experiência, o Supremo Tribunal Federal (STF), considerado os demais Tribunais pátrios, está na vanguarda na densificação e na concretização dos princípios, inclusive os de índole processual.

Não se trata de deificar o STF, mas apenas recolher um dado da realidade jurisprudencial, quiçá atrelado a própria estrutura do objeto de labuta diário da Corte Suprema, a Constituição, um sistema normativo aberto de princípios, regras e procedimentos.

Basta ver, como exemplo, a questão da motivação nos provimentos jurisdicionais, em que o Supremo avança para reconhecer o direito da parte ver seus argumentos considerados (Recht auf Berücksichtigung)[2], enquanto o Superior Tribunal de Justiça (STJ) persiste em assentar a desnecessidade do enfrentamento, um a um, dos referidos argumentos, o que, por vezes, impede o conhecimento dos recursos augustos e angustos (prequestionamento).

Nesses temas, o STF, alçado a condição de interlocutor oficial da Carta Magna (CRFB/88, artigo 102), boca da Constituição, tem uma dicção carregada por sotaque, sotaque carregado de princípios.

Bom é dizer, boca da Constituição não no sentido propugnado e já superado de MONTESQUIEU (bouche de la loi), mas sim naquele resultante do novo concerto entre os poderes constituídos, em que na conhecida fórmula do Juiz HUGHES: “We are under a Constitution but the Constitution is what the judges say it is”[3].

Precisamente, essa vox constitucional sofre a influência do timbre e, principalmente, do sotaque principiológico, que lhe dá uma impostação particular e própria das ditas Cortes Constitucionais.

Porém, pela jurisprudência atualmente vencedora no STF, a inserção dos princípios constitucionais no Novo CPC obstaria o conhecimento de recurso extraordinário (RE) sobre o tema, emudecendo a “boca da Constituição”.

É que o STF não conhece de RE se interposto contra violação dita reflexa à Constituição, isto é, se o normativo constitucional afetado tenha também disciplina infraconstitucional igualmente violada.

Por oportuno, colaciona-se:

“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. PROCESSUAL CIVIL. OBRIGAÇÃO DE FAZER. PLANO DE SAÚDE EMPRESARIAL. INDEFERIMENTO DA PRODUÇÃO DE PROVAS. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO ARTIGO , LV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. OFENSA REFLEXA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. Os postulados da legalidade, do devido processo legal, da ampla defesa, da motivação dos atos decisórios, do contraditório, dos limites da coisa julgada e da prestação jurisdicional, quando a verificação de sua ofensa dependa do reexame prévio de normas infraconstitucionais, revelam ofensa indireta ou reflexa à Constituição Federal, o que, por si só, não desafia a abertura da instância extraordinária. Precedentes: AI 804.854-AgR, 1ª Turma, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe de 24/11/2010; e AI 756.336-AgR, 2ª Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe de 22/10/2010. 2. Agravo regimental desprovido.” (ARE 644667 AgR, Relator (a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 20/09/2011, DJe-191 DIVULG 04-10-2011 PUBLIC 05-10-2011 EMENT VOL-02601-02 PP-00297).

O Enunciado de Súmula no 636 do STF, ainda que limitado a determina hipótese, é expressivo dessa tendência jurisprudencial, ad litteram:

“NÃO CABE RECURSO EXTRAORDINÁRIO POR CONTRARIEDADE AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA LEGALIDADE, QUANDO A SUA VERIFICAÇÃO PRESSUPONHA REVER A INTERPRETAÇÃO DADA A NORMAS INFRACONSTITUCIONAIS PELA DECISÃO RECORRIDA.”

Em rápidas pinceladas, a amplitude horizontal do verbete obsta que o STF conheça de RE aviado em desrespeito a norma constitucional, quando tal desvalia implique também em menoscabo a legislação infraconstitucional.

Por exemplo, o STF não conhece de RE em que se aponte a violação ao devido processo legal na hipótese em que seu vilipêndio passe e perpasse na quebra de preceptivos do Código de Processo Civil.

É de se ressaltar, a súmula obedece uma razão de ordem lógico-jurídica, evitando que o STF canibalize a competência do STJ, predestinado constitucionalmente a dar a última palavra sobre a hermenêutica infraconstitucional.

Isso porque, a par da extensão de nosso texto constitucional e de seu tônus principiológico, toda e qualquer tema pode ser reconduzido a uma questão constitucional e daí ser objeto de RE.

A prevalecer tal entendimento, os Tribunais Superiores seriam meros ritos de passagem, o que justifica, em alguma amplitude, o sempre mencionado enunciado de súmula.

Todavia, o caminho inverso, a autofagia, também não é recomendável.

É que a amplitude horizontal desmedida conferida ao enunciado de súmula pela Corte Suprema implica também numa renúncia perigosa e silenciosa de bem dizer o sentido e alcance das normas constitucionais.

Sem dúvida, essa impostação embute potencial comprometimento da força da dicção constitucional, na exata medida em que princípios constitucionais passam a ser conformados (verbalizados) por Tribunais não constitucionais.

A rigor, como consideração lateral, ficaria fácil esvaziar a competência do STF em determinado tema, bastando, para tal desiderato, a intercalação legislativa ordinária.

No ponto, pensamos, a solução não passa pela prescrição ou proscrição ao reconhecimento formal dos princípios constitucionais no Novo CPC, mas propriamente na releitura pelo STF de sua jurisprudência e mesmo do citado verbete sumular.

Por conseguinte, deve-se fazer uma clivagem, conhecendo o Supremo de RE quando o núcleo do princípio seja afetado, ainda que se tenham normas infraconstitucionais também atingidas.

O discrímen está na profundidade da afetação do princípio. Se a violação ao princípio constitucional é de intensidade cumpre conhecer o recurso extraordinário por sua violação, assegurando-lhe força normativa e não meramente semântica[4].

Entendimento diverso, com a devida vênia, é nulificar o núcleo deôntico do princípio pelo seu simples e expresso reconhecimento pela legislação infraconstitucional.


[1] Designaremos o projeto de Novo Código de Processo Civil, tramitando atualmente na Câmara de Deputados tombado pelo número 8046/2010 (Disponível em: http://www.câmara.gov.br/sileg/integras/831805.pdf Acesso em: 21 jul. 2011), com a expressão “Novo CPC”, sendo que, em contrapartida, o atual Código de Processo Civil — lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 —, pelo rótulo “Velho CPC”.

[2] MS 24268, Relator (a): Min. ELLEN GRACIE, Relator (a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 05/02/2004, DJ 17-09-2004 PP-00053 EMENT VOL-02164-01 PP-00154 RDDP n. 23, 2005, p. 133-151 RTJ VOL-00191-03 PP-00922

[3] “Nós estamos debaixo de umaConstituiçãoo, mas aConstituiçãoo é o que os juízes dizem que é.” (tradução livre).

[4] “Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave de forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo os sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra” (MELLO, Celso Antônio Bandeira, Curso de direito administrativo, p. 733/734).