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AP 470 – flexibilização procedimental

Conquanto meu foco não seja propriamente analisar questões penais, o precedente em apreço é uma ótima oportunidade para analisar as potencialidades da flexibilização procedimental, no que permitiria um substrato mais consistente para a construção daquele.

No ponto, interessa-nos a dobra do prazo recursal objeto da decisão, pela aplicação analógica do artigo 191 do Código de Processo Civil, a par do disposto no artigo 3o do Código de Processo Penal. De pronto, cumpre-nos ressaltar, incorreta a aplicação analógica do artigo 191 do Código de Processo Civil, pois no tema de prazos, entre eles sua contagem, inexiste qualquer omissão passível de colmatação pela analogia. A analogia pressupõe um espaço vazio, não regulado (BOBBIO).

O Código de Processo Penal tem regramento completo e exauriente sobre o assunto, no seu livro VI, Disposições Gerais. E aí, o tratamento exauriente exclui a possibilidade de preenchimento por analogia, a qual sempre pressupõe, em alguma medida, espaço legislativo. Dito às claras e às secas, não se trata de silêncio ocasional, mas propositado e eloquente, pois o Código de Processo Penal, em diversas oportunidades, trabalha com a hipótese de processos envolvendo réus diferentes — franqueando inclusive sua cisão, por exemplo (CPP, artigo 80)—, sem por isso estabelecer a dobra recursal. Assim, pouco densa a justificativa apresentada na decisão que implementou a dobra do prazo, porquanto a existência de réus com defensores diversos não estava, por assim dizer, fora do alcance do círculo de representações do legislador processual penal (LARENZ). Todavia, o caso merece enfoque noutro pano de fundo, igualmente tendente à permitir a flexibilização do prazo recursal, em respeito as peculiaridades do caso, do contraditório, da ampla defesa e, por consequente, do devido processo legal (CRFB/88, artigo 5o, incisos LIV e LV).

Poder-se-ia aplicar ao caso a teoria da flexibilização procedimental, que permite, frente à resiliência própria do procedimento, adaptá-las à situação estratificada nos autos, quando o regramento abstrato se tornar estéril. Como corretamente apreendido no livro de GAJARDONI (“Flexibilização Procedimental”, Atlas), a possibilidade de adaptação do procedimento obedece pressupostos específicos, quais sejam, a finalidade, o contraditório e a motivação. Justamente, observado o contraditório, em decisão devidamente motivada, ao caso se impunha a flexibilização do procedimento para o bem da proteção das partes contendoras, numa aplicação substancial do princípio da igualdade. Basta ter presente que o prazo dos embargos, legalmente estatuído com base na normalidade processual (o que normalmente acontece — quod plerumque accidit), não se adequa à anormalidade da ação penal 470, cujo número de páginas do acórdão é uma expressiva e contundente demonstração (8.405 páginas). GAJARDONI com acerto prelecionou:

“As circunstâncias da causa recomendam, ainda que inexistente autorização legal, que os prazos sejam adaptados judicialmente conforme a complexidade da matéria de fato e de direito debatido (direito material), ou, ainda, conforme as particularidades pessoais da parte litigante”.

Mesmo porque, como também acentua o mencionado autor, a flexibilização dos prazos “potencializa o alcance dos princípios do contraditório e da ampla defesa”. Portanto, na nossa concepção, de rigor a ampliação do prazo recursal, quiçá concedendo prazo até mais elástico para o manejo dos aclaratórios por parte dos réus, mas com arrimo teórico diverso, isto é, a teoria da flexibilização procedimental. Assim, perdeu nossa Suprema Corte uma ótima oportunidade para aplicar, sem desassombros, a flexibilização procedimental, fincando marco teórico decisivo ao desenvolvimento do tema.