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Direito processual civil. Fundamentação per relationem

O julgado em análise infelizmente reflete uma tendência jurisprudencial do judiciário brasileiro, sendo o entendimento agasalhado tanto pelo Supremo Tribunal Federal quanto pelo Superior Tribunal de Justiça.

A tristeza do posicionamento é atestada na exata medida em que resulta numa demissão do poder de julgar, numa terceirização indevida da característica mais relevante daquele, qual seja, a formação do juízo decisório. Antes de nós neste espaço virtual, bem fez ver MARCELO PACHECO MACHADO quando consignou: “Julgar por referência é não julgar democraticamente, é não refletir e não exprimir em linguagem o raciocínio, declinar razões e prestar contas à sociedade”[1]. Decerto, o exercício do poder, inclusive o jurisdicional, somente se legitima quando preparado por atos idôneos — legitimidade dos atos estatais (LUHMANN)[2] —, mormente quando incide sobre a esfera jurídica dos indivíduos. Se é verdade que o processo não é um fim em si mesmo, tampouco é correto assentar que seu desrespeito não redunda em ilegitimidade e, inclusive, na imperfeita compreensão do direito material que se pretende resguardar. Cada vez mais se apreende este verdadeiro imbricamento realizado pela atividade jurisdicional entre o processo e seu objeto, o que ocorre, via de regra, em qualquer processo produtivo, no caso, o processo de produção de um provimento jurisdicional que pretensamente realiza justiça. Efetivamente, a coincidência entre propósito e resultado depende de uma adequação dos meios aos fins, de uma adequada escolha e manuseio daqueles[3]. À vista disso, também o ato jurisdicional, por ser um ato de vontade e não um ato de imposição de vontade arbitrária, só se legitima, como ato estatal, acaso observe os parâmetros do devido processo legal, entre os quais, a obrigatoriedade de sua motivação[4]. Estabelece o inciso IX do artigo 93 da Constituição da Republica Federativa do Brasil: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”. O texto, ao mesmo tempo em que impede a introdução de disposição desonerando os magistrados do dever de motivar, impõe igualmente a necessidade de motivação de todo e qualquer ato jurisdicional. É o primado do Estado que se justifica — rechtsfertingender Staat. Portanto, dentre os direitos e garantias atribuídas ao indivíduo assume relevo ímpar a motivação dos atos jurisdicionais, notadamente a responsabilidade do magistrado demonstrar o acerto de suas conclusões (CPC, artigos 165, 458 e 459). Independentemente da concepção sobre a natureza jurídica da motivação, como exposição histórica, como instrumento de comunicação e fonte de indícios, como discurso judicial ou como atividade crítico-cultural, o certo é que a decisão deve ser motivada. E aí, pouco importa o livre convencimento do magistrado — persuasão racional —, já que não confere ao magistrado o arbítrio de silenciar quanto à formação do seu convencimento. Pelo contrário, justamente pelo magistrado não estar mais atrelado a esquemas fixos de apreciação da prova — prova legal —, impõe-se o dever de externar os motivos de suas decisões[5]. E aí, descabe, como placitado no julgamento em análise, a substanciação da decisão com a absorção das razões de parecer do Ministério Público. A necessidade de motivação dos provimentos jurisdicionais não se satisfaz com a fundamentação per relationem, com o reenvio à justificação contida noutro ato processual. Exige-se muito mais do seu prolator, isto é, a análise crítica dos pleitos que lhe são submetidos, dos argumentos aos quais adere. A adesão à fundamentação não pode ser automática, descomprometida. A obviedade, não se está a reclamar provimento jurisdicional alentado, perscrutando toda e qualquer faceta, mas sim a indicação do conteúdo mínimo, imprescindível e irredutível de qualquer decisão, isto é, a análise dos argumentos submetidos, com o espaço proporcional a sua seriedade. A decisão até pode ostentar o parecer do Órgão do Ministério Público como uma de suas fundações, mas não pode se apoiar exclusivamente neste. O Órgão do Ministério Público opina, não decide. Assim, abstraídas preferências estilísticas, a decisão tem que trazer razões próprias, ainda que em consonância com o parecer ministerial, sob pena do decisório ficar destituído de base jurídica idônea, não passando de um inaceitável e insólito pronunciamento autoritário do Poder Judiciário.

AUTOR DOS COMENTÁRIOS: Zulmar Duarte de Oliveira Junior

Advogado. Consultor Jurídico do Estado de Santa Catarina. Graduado pela Faculdade de Direito da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Pós-Graduando em Direito Civil e Processual Civil. Ex-Assessor Jurídico da Câmara de Vereadores de Imbituba/SC. Ex-Procurador Geral do Município de Imbituba/SC. Professor da UNIBAVE.


[1] Disponível em: http://atualidadesdodireito.com.br/marcelopacheco/2013/03/25/motivacao-das-decisoes-judiciaiseo-aspecto-moral-do-formalismo-motivacao-per-relacionemeterceirizacao-da-racionalidade-juridica/ Acesso em: 6 de maio de 2013.

[2] “Pode definer-se a legitimidade como uma disposição generalizada para aceitar decisões de conteúdo ainda não definido, dentro de certos limites de tolerância(LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Brasília: UNB, 1980. P. 30).

[3] CARNELUTTI, Francesco. Metodologia do direito. Campinas: Bookseller, 2000. P. 19

[4] “No Estado-de-direito, em que o poder se autolimita e seu exercício só se considera legítimo quando fiel a regras procedimentais adequadas (Niklas Luhmann, Elio Fazzalari), é natural que à liberdade de formar livremente seu convencimento no processo corresponda, para o juiz, o dever de motivar suas decisões.” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 4. Ed. Revisão e atualização de Antônio Rulli Neto. São Paulo: Malheiros, 2001. V. 2, p. 1077).

[5] “a liberdade do juiz no desempenho da atividade jurisdicional, assentada na certeza moral, encontra exatamente na fundamentação o seu preço.” (TUCCI, José Rogério Cruz e. A motivação da sentença no processo civil. São Paulo: Saraiva, 1987. P. 104).