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Devido processo legal e o interstício reflexivo

A presente reflexão surge de duas situações díspares, totalmente desligadas enquanto desdobramentos empíricos, mas que, por razões inexplicáveis da psique, chamaram minha atenção para, ao que penso, uma exigência do devido processo legal.

A primeira delas, a notícia sobre o apeamento do presidente paraguaio Fernando Lugo. A outra, a impetração de um habeas corpus pelo Senador Demóstenes no Supremo Tribunal Federal.

Adianto, a reflexão em nada reflete sobre eventual juízo positivo ou negativo quanto a sorte do Ex-Presidente e do Senador, pois, ao que tenho conhecimento, em nenhuma das duas situações se enfrentou frontalmente a temática. Como não dou conta de entender as vicissitudes do processo brasileiro, a prudência recomenda não aventurar-me por terras paraguaias e, muito menos, no tatame político.

Todavia, nas duas situações poder-se-á identificar uma questão comum a ser pensada (refletida), no que tange à estruturação do processo e, portanto, na conformação do devido processo legal.

É a necessidade da observância, em determinados casos, mormente quando o fator político tenha mais peso na balança do ato decisório, de um intersecto de tempo para maturação, um necessário momento de reflexão para a tomada de posição.

Normalmente, quanto ao tempo no processo, fixamos nossa atenção àquele necessário a sua realização, razão porque o fator temporal ingressa em nossa meditação como obstáculo a ser superado, suprimido, expungido.

Bom é dizer, o tempo é apreendido pelo direito, influindo e marcando definitivamente a compreensão deste, participando de diversos institutos jurídicos.

É o tempo jurídico, que fixa termos e prazos, nos quais se secciona a realidade que dura, distinguindo a legalidade de ontem da legalidade de hoje, separando a validade do que se fez antes e a invalidade do que se faz agora, a perda e a aquisição, o castigo dos que dormiram até o dia x e o prêmio dos que permaneceram em ativa vigília até a data y.[1]

Ocorre que, o tempo, que a tudo e a todos alcança indistintamente, remédio e cura dos mais diversos males, também pode se apresentar como uma necessidade, no que permite a maceração de questões, com a extração do suprassumo decisório.

E aqui, escuso-me de definir o ato decisório ou juízo, se vem de sentimento ou coisa que o valha.

O que importa para o raciocínio é a convicção de que somente com o curso do tempo, durante seu transcurso — corte da realidade em contínuo desdobramento — é que se forma a decisão. Igualmente, não menos correto, quanto maior o tempo despendido na análise de uma determinada questão maior a possibilidade de acerto da solução.

Assome-se, que o tempo apazigua paixões, permitindo, com o dissipar (esfriar) do calor da emoção, um ambiente mais propício a tomada da decisão.

Demais disso, não se pode olvidar, nossa Constituição, quiçá pela importância de determinados temas, estabelece interstícios (v. G. artigos 29 e 32), prazos mínimos a serem observados necessariamente à deliberação, no que deve reconhecer, fazendo coro ao bom jargão popular, de que “a pressa é inimiga da perfeição”.

Bom é dizer, o prazo aqui tem outra finalidade, não mais limitar o tempo em que o ato pode ser realizado, mas sim um ínterim em que, de forma alguma, o ato pode ser realizado.

Precisamente, uma distância entre dois fatos, atos ou, melhor dizendo, dois termos, a quantidade de tempo compreendida entre eles (concepção espacializante do tempo), no que empregamos as unidades de tempo (v. G. dias, horas, minutos).

CARNELUTTI bem observou referido fenômeno jurídico do tempo:

“Como é natural, a distância é prescrita segundo a medida do tempo, que, por sua vez, se baseia nas vicissitudes meteorológicas. Essa prescrição é feita mediante a indicação de um dado número de unidades de tempo (hora, dia, mês, ano). Ela consta, portanto, da indicação do ato desde o qual a distância será medida (final fixo do termo) e não apenas da indicação de tempo que constituem a duração do termo”.[2]

VICENTE RÁO tem conceito simples mas expressivo do prazo, compreensivo dessas distintas dimensões:

“Prazo se denomina o lapso determinado do tempo dentro do qual ou decorrido o qual deve-se praticar ou não praticar determinado ato”.[3]

Daí porque, pensamos, em alguma medida o devido processo legal exige que a tomada de decisão não seja imediata, logo após a ultimação do processo, mas que medeie o tempo necessário a uma adequada reflexão sobre o objeto do julgamento, um interstício reflexivo.

Noutra perspectiva, mas sem sair do derredor da questão, o contraditório e a ampla defesa de nada adiantam se os argumentos não sejam considerados[4], inclusive por faltar tempo para isso.

Ainda, um fator de legitimidade do procedimento é a indução aos interessados de que suas razões serão consideradas, o que é catalisado pela existência de um tempo de reflexão.

LUHMANN:

“Todos os outros participantes têm de ser induzidos através do próprio sistema específico do processo jurídico a uma cooperação justificativa da causa. Para isso são essenciais os seguintes componentes: um interesse próprio pelo assunto; a certeza de que será tomada uma decisão; e a incerteza quanto à natureza desta. É sobretudo a incerteza quanto ao resultado que é essencial ao procedimento”[5].

Em sendo assim, principalmente quando as decisões, por sua natureza, serão necessariamente coloridas por razões políticas, oportuno o estabelecimento de um período, um intervalo, destinado a destilação da decisão — um interstício reflexivo —, em respeito ao devido processo legal.

[1] BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980. P. 15.

[2] CARNELUTTI, Teoria geral do direito, p. 466.

[3] RÁO, Ato jurídico, p. 307.

[4] Como trabalhei noutro texto, o contraditório se resolve no trinômio informação, reação e consideração. Disponível em: http://www.redp.com.br/arquivos/redp_7a_edicao.zip Acesso em: 2-Jul-12.

[5] LUHMANN, Legitimação pelo procedimento, p. 45/46.