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Embargos de declaração, litigância de má-fé e o bis in idem

De acordo com o wikipedia, “bis” é um bombom de chocolate brasileiro da Lacta, em formato retangular, cujo mote, no que consente o gosto popular, é a impossibilidade de comer um só: quem come um, pede bis.

O paralelo com o bombom tem razão de ser numa acentuada tendência do Poder Judiciário, pelo menos na nossa percepção, na aplicação das sanções por litigância de má-fé.

Em regra, o Judiciário é avesso à aplicação das penalidades de litigância de má-fé, afastando-as sob a justificativa de que a iniciativa dos litigantes, ainda que em situações limítrofes, estaria abrigada no acesso à justiça ou na ampla defesa e no contraditório. É a autocontenção do chocólatra à tentação.

LIEBMAN acentuava:

“O processo civil, com sua estrutura contraditória em que a cada uma das partes se atribui a tarefa de sustentar suas próprias razões, é essencialmente refratário a uma rigorosa disciplina moralista do comportamento daquelas.” (LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. 3. Ed. Tradução e notas de Cândido Rangel Dinamarco. São Paulo: Malheiros, 2005. Vol. I.).

Porém, a habilidade e a perspicácia devem observar um limite ético.

Por vezes, deparamo-nos com situações que preenchem facilmente as hipóteses descritas no artigo 17 do Código de Processo Civil, consequentemente fazendo letra morta à deontologia do artigo 14 do mesmo Código, mas que, ainda assim, não são objeto de qualquer desvalor. Com o devido e merecido respeito, essa leniência do Poder Judiciário, em sancionar o litigante ímprobo, implica numa omissão indutora à recidiva.

Deveras, o Poder Judiciário, em própria abstêmia, não tem aplicado sanções por litigância de má-fé, muitas vezes, como dito, por exagerada e desmedida deferência ao postulado do acesso à justiça, do contraditório e da ampla defesa. O exame da jurisprudência demonstra que os Tribunais, em geral, afastam as penalidades por litigância ímproba sob aqueles epítetos.

Entretanto, numa tendência diametralmente oposta — também na nossa percepção e com as vênias de estilo —, dado o primeiro passo no reconhecimento da litigância de má-fé, o Judiciário tende a imbricar e cominar sanções conjuntas. Vários são os casos de aplicação cumulativa de todas as sanções estipuladas no artigo 18 do Código de Processo Civil, fazendo tábula rasa ao postulado da proporcionalidade/razoabilidade ou, ainda, à aderência (individualização) da pena.

Em suma, o Poder Judiciário, frente à litigância de má-fé, mantém uma postura omissiva ou atua de forma desmedida, cumulando sanções.

No particular, por permitir um paralelo didático e expressivo da situação, retoma-se a referência ao chocolatício que abriu o texto: resiste-se à tentação, não desembrulhando o primeiro bis; agora, aberto um, não se para mais, pois quem come um, pede bis.

Um exemplo paradoxal é o Recurso Especial no 1.250.739-PA, Relator para o acórdão Ministro Luis Felipe Salomão, julgado pela Corte Especial em 4/12/2013, no qual o Superior Tribunal de Justiça assentou a possibilidade de cumulação da sanção do artigo 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil com as dos artigos 17, inciso VII, e 18 do mesmo Código.

Colhe-se da ementa desse amargo precedente:

“PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC. INTERPOSIÇÃO DE EMBARGOS DE DECLARAÇÃO COM INTUITO MANIFESTAMENTE PROTELATÓRIO. CUMULAÇÃO DA MULTA PREVISTA NO ART. 538 DO CPC COM INDENIZAÇÃO POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ, PREVISTA NO ART. 18, § 2º, DO MESMO DIPLOMA. CABIMENTO, POR SE TRATAR DE SANÇÕES QUE TÊM NATUREZAS DIVERSAS.

1. Para fins do art. 543-C do CPC: A multa prevista no artigo 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil tem caráter eminentemente administrativo – punindo conduta que ofende a dignidade do tribunal e a função pública do processo -, sendo possível sua cumulação com a sanção prevista nos artigos 17, VII e 18, § 2º, do Código de Processo Civil, de natureza reparatória.

2. No caso concreto, recurso especial não provido.” (REsp 1250739/PA, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Rel. P/ Acórdão Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, CORTE ESPECIAL, julgado em 04/12/2013, DJe 17/03/2014).

Eis o ponto, tanto o inciso VII do artigo 17 do Código de Processo Civil, como o artigo 538, parágrafo único, do referido diploma processual, tratam de recursos protelatórios, sendo a última disposição especial frente à primeira, pois embrulha especificamente o recurso de embargos declaratórios.

A especialidade da sanção do artigo 538, parágrafo único, do CPC afasta a estipulação genérica estatuída no artigo 17, inciso VII, do CPC, uma vez que nada justifica o imbricamento de penalidades para o mesmo fato histórico.

“O terceiro critério, dito justamente da lex specialis, é aquele pelo qual, de duas normas incompatíveis, uma geral e uma especial (ou excepcional), prevalece a segunda: lex specialis derogat generali. Também aqui a razão do critério não é obscura: lei especial é aquela que anula uma lei mais geral, ou que subtrai de uma norma uma parte da sua matéria para submetê-la a uma regulamentação diferente (contrária ou contraditória). A passagem de uma regra mais extensa (que abrange um certo genus) para uma regra derrogatória menos extensa (que abrange uma species do genus) corresponde a uma exigência fundamental de justiça, compreendida como tratamento igual das pessoas que pertencem à mesma categoria. A passagem da regra geral à regra especial corresponde a um processo natural de diferenciação das categorias, e a uma descoberta gradual, por parte do legislador, dessa diferenciação. Verificada ou descoberta a diferenciação, a persistência na regra geral importaria no tratamento igual de pessoas que pertencem a categorias diferentes, e, portanto, numa injustiça. Nesse processo de gradual especialização, operado através de leis especiais, encontramos uma das regras fundamentais da justiça, que é a do suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu).” (BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. Ed. Tradução Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999).

Salvo melhor receita, aqui não se tem a incidência de uma situação em mais de um suporte fático, como objeto de desvalor por mais de uma das perspectivas jurídicas de um determinado ordenamento jurídico.

“O mesmo fato ou complexo de fatos pode ser suporte fático de mais de uma regra jurídica. Então, as regras incidem e fazem-no fato jurídico de cada uma delas, com a sua respectiva irradiação de eficácia. No mundo jurídico, ele é múltiplo; entrou, ou reentrou por várias aberturas, levado por diferentes regras jurídicas, sem deixar de ser, fora desse mundo, ou nele mesmo, inicialmente, um só. Nada impede que o mesmo fato seja suporte fático de regras de direito civil, de direito penal, de direito processual, de direito constitucional, ou de direito das gentes” (MIRANDA, Pontes. Tratado de direito privado: parte geral. 2. Ed. Campinas: Bookseller, 2000. Tomo I).

Diversamente, o sancionamento previsto no artigo 17, inciso VII, e no artigo 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil observam a mesma lógica, compartilhando de idêntica natureza jurídica, objetivando por cobro numa conduta processual desleal pelo manejo de recurso protelatório.

Assim, nada justifica, nem consente, a aplicação, para uma mesmíssima situação, de idênticas penalidades por litigância de má-fé — recurso protelatório —, em autêntico bis in idem, apenando mais de uma vez o litigante, como se fosse impossível parar na primeira penalidade.

À obviedade, não se exclui a possibilidade de aplicação conjunta dos dispositivos em determinado processo quando presente mais de uma conduta passível de cominação. Por exemplo, apresentam-se embargos declaratórios e outro recurso com o fito protelatório.

Sem dúvida, o Judiciário tem que responder à litigância de má-fė, mal crônico dos processos judiciais, mas não pode engordar as sanções com excesso de calorias. A sanção necessariamente encontra limite e dimensionamento na conduta praticada, devendo observar irrestritamente o princípio retributivo.

“No princípio retributivo expressa-se o princípio da Justiça da igualdade: igual por igual, bem por bem, mal por mal. Como o princípio de Talião: olho por olho, dente por dente.” (KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Tradução e revisão de José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1986).

Daí porque, os embargos declaratórios chamam a incidência da regra do artigo 538, parágrafo único, do CPC, a qual, por sua especialidade, afasta a aplicação do artigo 17, inciso VII, do CPC, tendo em linha de conta que o legislador entendeu que a postergação processual indevida, ocasionada pelo manejo desleal dos embargos, merece ser sancionada de forma específica, excluindo consequentemente a aplicação da regra geral.

Evidentemente, acaso fosse a intenção permitir a adição das sanções, o legislador teria inserido no artigo 538, parágrafo único, do CPC a cláusula “sem prejuízo” ou outra equivalente, afastando a aplicação do princípio da especialidade.

Portanto, é de se ter parcimônia na experimentação de tais sanções, pois a gula pode levar ao bis in idem, com todos os malefícios calóricos correspondentes, já que impossível aplicar uma só: quem aplica uma penalidade, pede bis.