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Mandado de segurança: dois passos descompassados rumo ao cadafalso

Dois entendimentos recentes direcionaram o instituto do mandado de segurança, por assim dizer, para caminho tortuoso, sujeito a toda sorte de percalços, infortúnios e cadafalsos.

Primeiro passo: no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 43439-MG, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 01/10/2013, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) assentou que o mandado de segurança contra provimento que retêm agravo, inicialmente formado por instrumento, deve ser impetrado no prazo de cinco dias.

Assim ficou consubstanciada a ementa do precedente:

“PROCESSO CIVIL. CONVERSÃO EM RETIDO DO AGRAVO DE INSTRUMENTO.

DECISÃO IRRECORRÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. CABIMENTO. PRAZO PARA A IMPETRAÇÃO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 268/STF. ART. ANALISADO: 5º, III, DA LEI 12.016/2009.

1. Mandado de segurança distribuído em 22/09/2011, do qual foi extraído o presente recurso ordinário, concluso ao Gabinete em 05/08/2013.

2. Cinge-se a controvérsia a determinar se se justifica a conversão em retido do agravo de instrumento interposto pelo impetrante contra a decisão judicial que, em ação de investigação de paternidade, deferiu a realização antecipada do exame de DNA.

3. Segundo precedentes do STJ, é cabível a impetração de mandado de segurança contra decisão judicial irrecorrível, desde que antes de gerada a preclusão ou ocorrido o trânsito em julgado, o que, à primeira vista, soa paradoxal, porquanto, a princípio, a decisão irrecorrível torna-se imutável imediatamente à publicação.

4. A decisão que converte o agravo de instrumento em retido é irrecorrível. Ainda assim, será sempre admissível, em tese, a interposição de embargos de declaração, a fim de que o Relator possa sanar vício de omissão, contradição ou obscuridade quanto aos motivos que o levaram a decidir pela ausência do risco de causar à parte lesão grave ou de difícil reparação, cuja existência ensejaria o processamento do agravo de instrumento.

5. Na ausência de interposição de embargos de declaração, terá a parte o prazo de 5 dias para a impetração do writ, contado da publicação da decisão, sob pena de tornar-se imutável o decisum, e, portanto, inadmissível o mandado de segurança, nos termos do art. , III, da Lei 12.016/2009 e da súmula 268/STF. Acaso interpostos os aclaratórios, esse prazo fica interrompido, considerando que o mandamus é utilizado, nessas hipóteses, como sucedâneo recursal.

6. Na espécie, é manifestamente inadmissível o mandado de segurança impetrado depois de já tornada definitiva a decisão judicial impugnada.

7. Recurso ordinário a que se nega provimento.”

A decisão, partindo da premissa do cabimento do mandado de segurança contra provimento de conversão do agravo de instrumento em retido — a par da inexistência de recurso para ataque da desfiguração recursal —, estabeleceu o prazo exíguo de cinco dias para impetração.

O entendimento palmilha na conjugação dos incisos II e III do artigo da lei nº 12.016, de 7 de agosto de 2009, com o enunciado de súmula nº 268 do Supremo Tribunal Federal (STF).

Ponto está, nas franjas da decisão, como não caberia recurso do provimento que determina a conversão do agravo de instrumento em retido, deveria se dar passagem ao mandado de segurança.

Nada obstante, em contraponto, como verdadeira cancela de tráfego, a referida decisão obstruiu o caminho da via mandamental, estabelecendo então o exíguo prazo de cinco dias para ignição da impetração.

Precisamente, considerando que o provimento de conversão somente seria suscetível de ataque por embargos declaratórios, a decisão erigiu o prazo destes como limite ao veículo mandamental (CPC, artigo 535).

A despeito da impropriedade em considerar irrecorrível o provimento que converte o agravo e suscitar a possibilidade do seu ataque via declaratório (recurso, pois — CPC, artigo 496, inciso IV), a decisão estabeleceu impróprio paralelismo entre preclusão e coisa julgada, utilizando como tábua rasa para tanto o inciso III do artigo da lei nº 12.016/09.

À obviedade, preclusão e coisa julgada têm veio comum na segurança jurídica, sendo que a última, em boa parte, aproveita-se e opera sobre o produto processual consolidado pela primeira. Bem por aí se fala em coisa julgada formal como sinônimo da preclusão máxima, a estabilização interna do decisório.

Verdade seja, tal aproximação não pode alcançar o paroxismo de equiparar — para tudo, em qualquer hipótese e contra todos —, a preclusão com a coisa julgada, a par de que somente a última atua para além das fronteiras do processo, com efeito obstaculizador exógeno.

A coisa julgada impede o debate do provimento, sob quaisquer de seus ângulos, no futuro, dando certeza quanto ao bem da vida ali garantido, imunizando, de forma transcendente, os efeitos daquela. À sua vez, a preclusão atua somente no processo em que ocorre, de forma endógena (CPC, artigos 467 e 473).

A falsa taxinomia não muda a natureza das coisas: o inciso III do artigo da lei nº 12.016/09, no que prestigia aturado entendimento jurisprudencial cristalizado no enunciado de súmula 268 do STF, objetiva afastar tão só a utilização do mandado de segurança como sucedâneo da rescisória.

Mesmo porque, a partir do momento em que a coisa julgada opera, o provimento jurisdicional passa a ser galvanizado constitucionalmente (CRFB/88, artigo , inciso XXXVI), tal como a garantia do mandado de segurança (CRFB/88, artigo , inciso LXIX).

Aliás, a viabilidade do uso da rescisória frente à garantia constitucional da coisa julgada é alcançada por uma interpretação sistemática do texto constitucional, tendo em vista sua previsão genérica nos artigos 102, inciso I, alínea j e 105, inciso I, alínea e, da Carta Magna[1].

Assim, não deve ser dado trânsito ao mandado de segurança quando a situação, bem ou mal, já tenha sido ultrapassada pela coisa julgada, sob pena de esmaecimento desta importante garantia constitucional.

Agora, o mesmo não ocorre no tocante à preclusão, porquanto nem o legislador infraconstitucional, tampouco o constitucional, limitaram o uso do veículo do mandado de segurança contra a preclusão. A limitação não se extrai do inciso III do artigo da lei nº 12.016/09 ou do enunciado de súmula 268 do STF.

BUZAID intuía com precisão: “À luz destes conceitos, temos para nós que a Súmula n. 268 se refere à coisa julgada, não à preclusão (…)”[2].

A garantia constitucional do mandado de segurança, dirigida ao ataque de ato ilegal coator, não pode ser obstaculizada pela ocorrência da preclusão de determinada decisão. Não há, pois, conjecturas nesse caminho, e sim, diretrizes constitucionais expressas em determinado sentido, isto é, o cabimento do mandado de segurança contra ato ilegal.

Mesmo porque, como dito, a preclusão só atua intramuros, no horizonte de determinado processo, não podendo alcançar, prejudicando, a via autônoma do mandado de segurança.

Poder-se-ia objetar que o raciocínio prestaria flanco, dando passagem, ao argumento da impossibilidade de condicionamento do mandado de segurança, afastando restrições não derivadas diretamente do texto constitucional.

Não é disso que se trata.

Como bem lembram ANDRE ROQUE e FRANCISCO DUARTE, o direito não trabalha com absolutos[3], razão porque inexistem direitos constitucionais incontrastáveis e impassíveis de qualquer calibração, eis que sempre sujeitos a condicionamento recíproco.

A possibilidade de manejo do mandado de segurança é corretamente afastada, e nisso não verificamos qualquer inconstitucionalidade, quando o ordenamento oferece outras vias igualmente eficazes para a reforma do ato ilegal (artigo , inciso III, da lei nº 12.016/09), assumindo aquele uma feição tipicamente subsidiária.

Deveras, as vedações ao uso do mandado de segurança atuam em dois momentos, na largada e na chegada. É vedado o uso do mandado de segurança acaso presentes outras vias com potencial eficácia para por cobro na ilegalidade (artigo 5o, inciso I e II, da lei no 12.016/09), ou, ainda, quando já percorrida uma dessas vias sem possibilidade de retorno (artigo 5o, inciso III, da lei no 12.016/09).

Tais vedações têm como denominador comum a tentativa de evitar a transformação, barateando, da via mandamental em pedra filosofal[4], ou seja, como único meio idôneo para salvar todas as indigitadas injustiças, ilegalidades ou abusos de poder.

Porém, diferente, com todas as vênias de estilo, é a hipótese de determinado ato processual ilegal não ser sujeito a qualquer recurso propriamente dito, isto é, a uma via recursal cujo tônus primordial é a possibilidade de nova decisão. Aqui o mandado de segurança não deve encontrar quaisquer obstáculos, conquanto a jurisprudência exija a teratologia da decisão.

Assim, não é a preclusão verdadeiro obstáculo ao uso do mandado de segurança. O que paralisa propriamente o uso da via mandamental é a existência de alternativa, com idêntico destino e tráfego desimpedido.

Portanto, andou mal o STJ ao pretender, em raciocínio linear, equiparar provimentos preclusos e os transitados em julgados para negar trânsito ao mandado de segurança, valendo observar que, por vezes, o farol mostra exatamente o curso a ser evitado.

Segundo passo: primeiramente o STF, seguido posteriormente pelo STJ (step by step), permitiram a desistência do mandado de segurança após a prolação de provimento de mérito (STF: RE 669.367-RJ, Pleno, DJe 9/8/2012; e RE-AgR 550.258-PR, Primeira Turma, DJe 26/8/2013 — STJ: REsp 1405532/SP, Segunda Turma, DJe 18/12/2013).

Ora bem, no atual estado da arte, antes da dita triangulação processual com o chamamento do réu, o autor pode desistir livremente de sua demanda. Citado o réu, a desistência fica condicionada ao consentimento deste, como consectário da compreensão de que ele também tem legítimo interesse na apreciação do mérito da demanda.

Isso porque, chamado ao processo, pela bilateralidade do direito de ação (ou direito de exceção para alguns), o réu tem direito à prestação da tutela jurisdicional, podendo postular a rejeição da pretensão do autor, obtendo segurança jurídica sobre o tema.

Ao autor, negado consentimento à desistência, somente se abre, para dar cabo ao processo, a possibilidade de renunciar à pretensão, ato acobertado pela coisa julgada material.

Entretanto, prolatada a sentença, inviável a desistência do processo, ainda que acorde as partes, pois já prestada a tutela jurisdicional. O ato estatal cristalizado não pode ser colhido pelo ato das partes. As partes podem acordar sobre o conteúdo da sentença, redimensionado seus efeitos, mas jamais desconsiderá-la olimpicamente.

A obviedade, ao autor ou réu é ainda facultado desistir/renunciar, independentemente de qualquer assentimento, quanto ao recurso interposto, o que fará prevalecer o provimento jurisdicional objeto do próprio recurso.

Justamente, linhas gerais, o retrato se aplica ao mandado de segurança, com a ressalva no tocante à desnecessidade de intimação da parte contrária para a desistência, a par do que dispõe hoje o artigo 24 da lei no 12.016/2009. Na compreensão que dirige a interpretação dominante, a lei estabelece os casos em que se aplica ao mandado de segurança o Código de Processo Civillex specialis derogat generali —, não sendo portanto extensível ao mesmo, ipso facto, o disposto no artigo 267, § 4o, do Código de Processo Civil.

Ainda que assim o seja, as decisões em testilha, no que permitem a desistência do mandado de segurança quando já prolatado o provimento jurisdicional de mérito, afetam a latitude deste importante instrumento constitucional.

Não é dado às partes o poder de desconsiderar a prestação da tutela jurisdicional já realizada. O provimento de mérito, enquanto ato estatal, não pode ser simplesmente afastado do mundo jurídico, quase que rescindido pela desistência apresentada pelo impetrante.

O mandado de segurança é uma ação constitucional cujo exercício traz consigo potencialmente, implementando, o Poder Jurisdicional. Prestada a tutela jurisdicional de mérito, em ato estatal predestinado a regular a situação estratificada, aquela se impõe às partes, independentemente de sua vontade. Isso é ínsito e próprio do poder estatal.

Nesse passo, o entendimento trilhado nas decisões, no que permite a distinção entre provimentos jurisdicionais prolatados em sede de mandado de segurança daqueles outros prolatados em feitos diversos (para permitir a desistência no primeiro caso), diminui consideravelmente a eficácia dos primeiros.

Os provimentos de mérito prolatados em mandado de segurança seriam, por assim dizer, inseguros, pois sempre sujeitos ao domínio da parte, não tendo, por si só, império suficiente para se imporem. O mandado de segurança passa a ser um balão de ensaio, cujo resultado do experimento fica sempre ao alvitre da parte.

Essa é uma das hipóteses em que, melhor do que quaisquer reflexões em abstrato, as próprias questões encarregam-se de evidenciar as aporias e perplexidades a que nos conduzem as mencionadas decisões.

Em virtude de tudo isso, temos que esses dois passos descompassados dados pela jurisprudência colocaram o mandado de segurança em via periclitante, pelo que devem atalhados tais trechos, retornando o instituto aos caminhos historicamente já trilhados com segurança, evitando cadafalsos.

[1] http://www.conjur.com.br/2011-abr-21/pec-recursos-recursos-são-remedios-rescisorios

[2] BUZAID, Do mandado de segurança, p. 141.

[3] ROQUE, Mandado de segurança, p. 180.

[4] BUZAID, Do mandado de segurança, p. 138.