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Repercussão geral — erros de direito — perigo de contágio?

“A missão do juiz é, conforme sabemos, em primeiro lugar, comprovar os fatos, e, em segundo lugar, aplicar-lhes as normas jurídicas. Pode-se cometer erro tanto na primeira quanto na segunda fase desse trabalho; em particular, não se deve acreditar que, tendo o juiz estudado o direito, não sejam possíveis e até freqüentes os erros quanto ao alcance e mesmo à existência próprias das leis, muito mais considerando-se o direito moderno, infelizmente (…), é bastante complicado.

Assim sendo, enquanto se tratar do dano que as partes experimentarem, que o juiz se tenha equivocado na comprovação dos fatos ou na aplicação das normas jurídicas, dá no mesmo; mas, pelo contrário, é diferente o valor dos dois tipos de erro do ponto de vista da comunidade, pois dos erros de direito pode-se dizer que, diferentemente dos erros de fato, são contagiosos” (CARNELUTTI).

O presente post, para além de uma tomada de posição, pretende continuar a viva conversa virtual iniciada pelo twitter com André Roque (@andrevroque), Fernando Gajardoni (@fgajardoni), Luiz Dellore (@dellore), Luiz Henrique Volpe (lhvolpecamargo), Marcelo Machado (@mp_machado) e Renato de Melo Filho (@renatorero).

Faço o registro também para me desobrigar a passar em revista algumas lições doutrinárias, indo diretamente ao ponto da controvérsia que embainha, a meu sentir, uma contradição.

A discussão se deu no tocante a reprodução do modelo da repercussão geral ao recurso especial, como propugnado e noticiado pelo Superior Tribunal de Justiça (Disponível em: http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=104922&tmp.area_anterior=44&tmp.argumento_pesquisa=repercuss%E3o%20geral Acesso em: 28/03/2012).

Em linhas gerais, o nó górdio da posição contrária a repercussão geral está no enlace, pela mesma, de fraturas ao ordenamento jurídico, na medida em que possível arrematar no nó violações (infra) constitucionais, obstaculizando o debate de pretensão recursal eventualmente vencedora.

Esse modo de ver às coisas parte do pressuposto lógico de que tal estigmatização recursal, assinalada pelo instituto da repercussão, ao filtrar os recursos passíveis de submissão aos Tribunais de superposição, absolvendo de instância os demais, baseia-se, via de regra, em questões alheias a própria pretensão recursal (repercussão jurídica, política, social e econômica).

O recurso não deixa de ser conhecido por ausência de boas razões, mas sim porque não transcendente, o que pode cobrir manifestas inconstitucionalidades ou ilegalidades.

Sem dúvida, dessa perpetuação de incorreções (infra) constitucionais decorre um dano marginal ao ordenamento, à sua eficácia, à pretensão de ordenar o que desordenado está.

Mas, pergunto-me, será isso suficiente para advogar que a repercussão geral compromete a unidade do direito, que tem na uniformização jurisprudencial importante, senão indispensável, bastião de defesa.

Penso que não.

Referido dano marginal não é suficiente a comprometer a pretensão de eficácia do ordenamento, a força normativa (infra) constitucional, posto que não repercute suficientemente a ponto de corromper sua unidade.

O sistema se acomoda, no que concordo com Fernando Gajardoni, com essas divergências intestinais, principalmente quando não passíveis de se reproduzirem num sem número de casos (repercussão), uma vez que aquele trabalha num plano óptimo.

Basta pensar que, apesar da incidência da norma independer da vontade dos indivíduos — os fatos ingressam a todo momento no mundo jurídico (PONTES DE MIRANDA) —, diversas vezes a norma não adapta ou molda a realidade ao que pretende, não realiza a tese predisposta como consequência a hipótese prevista e realizada (CARNELUTTI).

Nem sempre a coincidência entre o fato específico real e o fato específico legal (CALAMANDREI) faz prevalecer a vontade concreta da lei (CHIOVENDA).

Isso porque, normalmente a chave de ignição para atuar a lei está nas mãos do interessado, ao qual se permite, e acontece, não girá-la, deixando, entre outros, o Poder Judiciário na sua inércia conatural e o direito paralisado.

Ainda que assim não fosse, diversas são as vezes que uma decisão dita inconstitucional ou ilegal prevalece pelo manuseio infeliz, por exemplo, dos recursos de uniformização (v. G. ausência de prequestionamento).

Em todas essas situações o ordenamento se alheia a incorreção episódica, mercê da existência de meios para sua retificação (v. G. recursos de uniformização), ainda que não alcançados, virtualidades que legitimam, só por si, a decisão (LUHMANN).

Aliás, conspira em favor da conclusão a tipologia propugnada para a abertura das vias aos recursos augustos e angustos (repercussão jurídica, política, social e econômica), possibilitando o livre trânsito de recursos contra decisões passíveis de gracejarem, repercutirem, transcenderem, aí com perigo a unidade do ordenamento.

Portanto, na minha concepção, a repercussão geral, como pressuposto de admissibilidade recursal, não enverga e muito menos quebra a unidade do direito, pois as decisões colocadas à margem de revisão não repercutem significativamente sobre a aplicação do mesmo.

Retomando a citação que abre o post, esses erros de direito, bacilos da doença, ficam no hospedeiro inicial, não se transmitem, pelo que insuscetível de surto epidêmico e risco ao tecido conjuntivo da sociedade.

Agora, noutra ângulo, não deixa de ser interessante a esquizofrenia, da qual também confesso padecer, da incessante insatisfação com o que desejamos como produto da atividade jurisdicional, segurança jurídica ou justiça da decisão.

Não que as duas expressões sejam antípodas. Ocorre que, em alguma medida, a necessidade da segurança jurídica, de um ponto final a discussão, impede revisões contínuas do decidido, por mais lídimas e alvissareiras sejam as razões.

Porém, os operários do direito ora erigem barreiras a revisão contínua das decisões, buscando cimentar uma decisão, ainda que injusta, ora permitem seu rompimento, com a reconstrução da solução, talvez mais justa.

E aí, sejamos coerentes, reforçar os poderes de decisão dos juízes inferiores, na realidade brasileira, resulta em desuniformização jurisprudencial. As razões são muitas. Seduz ao intérprete ter a última palavra, ainda mais quando afinada com a batida do próprio coração.

Alguém dirá, o raciocínio parte do suposto de que os magistrados locais não observarão os precedentes dos Tribunais Superiores, pelo que se presume o extravagante (MARCO AURÉLIO).

Entretanto, a insubmissão jurisprudencial, galvanizada numa má compreensão da independência do Poder Judiciário, é o que ordinariamente acontece. E se acentua quando não existe meio expedito para sua pronta correção, do que a reclamação para garantir o respeito as súmulas vinculantes é expressiva prova.