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Segurança jurídica — mudanças jurisprudenciais — novo CPC

Um dos temas que domina, por assim dizer, minha compreensão sobre o direito é a segurança jurídica, nem tanto no seu reflexo objetivo, como no subjetivo[1].

A cada dia fico mais seguro que um dos postulados mais fulgurantes do direito é a segurança jurídica, principalmente no que planifica e concede um mínimo de previsibilidade aos indivíduos.

Se o futuro tem por ofício ser incerto, o direito tem, pelo menos, independentemente de sua função emancipadora, uma pretensão de estabilidade. Esta é propriamente a justificativa para existência do direito objetivo e do reconhecimento da segurança jurídica (CRFB/88, artigo 5o).

Precisamente, uma das facetas do postulado da segurança jurídica (compreendida no próprio Estado de Direito), mais propriamente seu reflexo subjetivo, é o princípio da proteção à confiança.

Em linhas gerais, o princípio da proteção à confiança resguarda o indivíduo contra alterações no direito ou na conduta do Estado frente a situações já transcorridas, evitando-se a frustração de suas legítimas expectativas.

Nesta perspectiva, o Poder Público não pode adotar providências contrárias as diretrizes por si antes emanadas, surpreendendo os que acreditaram nos atos estatais, para, por exemplo, sancioná-los com noveis entendimentos.

Expressivo desse modo de ver às coisas é o disposto no artigo 2o, inciso XIII, da lei no 9.784, de 29 de janeiro de 1999: “interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação”.

Não obstante a correção, inclusive axiológica, do raciocínio, de fato, quando vamos a prática, não são poucas as situações em que um fato histórico, ao ser cotejado, parece se desprender da época em que realizado, pois analisado em consonância com as diretrizes reinantes.

Melhor dizendo, o fato histórico não é visto com os óculos do passado, contemporâneos ao momento em que concretizado, mas sim pelas lentes do presente, que turvam a exata compreensão daquele.

Eis o ponto.

Essa descontextualização do fato histórico, do momento da tomada de decisão, é extremamente prejudicial nas análises de condutas envolvendo, entre outras, improbidade administrativa, exações fiscais e etc.

Ora, normalmente, o homem diligente, ao tomar suas decisões, pauta-se na compreensão vigente sobre determinado tema, faltando ao mesmo qualquer dom de prestidigitação[2].

Em contrapartida, no mais das vezes, a conduta somente passa pelo crivo judicial depois de muito tempo, podendo ser crivada por críticas aviadas no entendimento agora dominante. Faz falta uma análise retrospectiva do fato e da compreensão jurídica.

Diversos são os pronunciamentos que, analisando condutas realizadas no passado, justificáveis pelo entendimento prevalecente no momento em que realizadas, recebem como presente, no presente, a sanção judicial.

Basta lembrarmos, como paralelo, a interpretação sobre os dispositivos da lei de licitações, cujo sentido e alcance atual diverge consideravelmente daquele cristalizado na década de 90.

E é bom que assim seja. A jurisprudência é importante elemento na atualização e renovação do direito. Só que, esse novo ar, bem vindo, não pode e nem deve alterar o passado, limitando-se a projetar o futuro.

Com isso quero dizer que a análise das condutas estratificadas em processos, mormente quando tendentes a sindicar condutas imbricadas com questões jurídicas, deve observar a compreensão jurídica que se tinha entrementes, no momento de sua realização.

Não é só a prescrição e a decadência que obstam a análise dos fatos. No dimensionamento da culpa e do dolo de determinado agente necessário se ater, reportando, ao momento histórico da conduta, prestigiando a segurança jurídica, como fator temporal limitador, agora não da própria análise, de sua revisão — nova visão.

A nosso ver, nesse ponto, o Novo CPC enxergou muito bem, ao propugnar eficácia prospectiva as alterações jurisprudenciais, na forma do seu artigo 882[3]:

“Art. 882. Os tribunais, em princípio, velarão pela uniformização e pela estabilidade da jurisprudência, observando-se o seguinte:

I – sempre que possível, na forma e segundo as condições fixadas no regimento interno, deverão editar enunciados correspondentes à súmula da jurisprudência dominante;

II – os órgãos fracionários seguirão a orientação do plenário, do órgão especial ou dos órgãos fracionários superiores aos quais estiverem vinculados, nesta ordem;

III – a jurisprudência pacificada de qualquer tribunal deve orientar as decisões de todos os órgãos a ele vinculados; IV – a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores deve nortear as decisões de todos os tribunais e juízos singulares do país, de modo a concretizar plenamente os princípios da legalidade e da isonomia;

V – na hipótese de alteração da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.

§ 1o A mudança de entendimento sedimentado observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando o imperativo de estabilidade das relações jurídicas.

§ 2o Os regimentos internos preverão formas de revisão da jurisprudência em procedimento autônomo, franqueando-se inclusive a realização de audiências públicas e a participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a elucidação da matéria.”

A olhos vistos, além da preocupação com a uniformização da jurisprudência, decorrente também do respeito pelo projeto a segurança jurídica, o mesmo volta sua atenção a estabilidade dos entendimentos jurisprudenciais.

Estabilidade não a engessar a evolução da hermenêutica, mas a proteger a interpretação realizada, acorde com o período histórico em que emanada, na sua pré-compreensão, possibilitando a modulação dos efeitos da novel compreensão.

Se é certo que o futuro não pode ser algemado pelo passado, tampouco é correto que este seja objeto de contínua revisão no presente, pois o que é passado no passado ficou e lá deve estar.

[1] Veja-se, por exemplo: http://zulmarduarte.com/2011/11/direito-de-ser-esquecido-—-the-right-to-be-let-alone/ http://zulmarduarte.com/2011/06/requiem-sobre-coisa-julgada-coisa-insegura/ e http://www.osconstitucionalistas.com.br/segurança-juridicaeprotecaoaconfianca

[2] “Em todo caso, é um signo manifesto da civilização que os homens provejam a uma apreciação preventiva de seus atos, de modo que se assegure sua conformidade com o Direito” CARNELUTTI, Instituições, vol. 1, p. 344.

[3] Designaremos o projeto de NovoCódigo de Processo Civill, tramitando atualmente na Câmara de Deputados tombado pelo número80466/2010 (Disponível em: http://www.câmara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=490267 Acesso em: 27 abr. 2012), com a expressão “Novo CPC”, sendo que, em contrapartida, o atual Código de Processo Civil — lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 —, pelo rótulo “Velho CPC”.