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Contraditório cooperando de Boa-Fé:

Por uma Nova Gramática do Processo*

Mérito inegável do projeto de Novo Código de Processo Civil (Novo CPC)é a preocupação com a dimensão da legitimidade dos provimentos jurisdicionais, mormente quando presente decisões passíveis de serem expandidas.

Lugar comum a constatação de que o constitucionalismo moderno só concebe um estado com qualidades, virtudes estas que lhe dão a configuração de um Estado Constitucional: “Eis aqui as duas grandes qualidades do Estado constitucional: Estado de direito e Estado democrático.”[1]

Para além da domesticação do domínio político (estado de direito), doura-se a cariz democrática do Estado, pois daí extrai-se a legitimidade do ordenamento jurídico.

O processo judicial, enquanto expressão da feição Estatal, não pode, nem deve, ficar infenso à tal dimensão, ser despojado, pura e simplesmente, da qualificação democrática.

A par disso, diversos institutos processuais passaram a ser conformados à necessidade de ampliação democrática do debate, objetivando uma abertura procedimental que equalize o déficit de legitimidade democrática do processo, ou seja, caucionando sua atuação contra o risco democrático (GRIMM).

Essas aberturas procedimentais conferem maior latitude ao horizonte decisório, privilegiando o caráter pluralista da novel hermenêutica, permitindo ao órgão julgador uma ampliada e mais qualificada perspectiva decisória.

É uma nova dimensão da legitimação pelo procedimento (LUHMANN), a qual impõe que novos atores sejam considerados no processo de construção do provimento jurisdicional.

Bem percebeu HÄRBELE, em livro claramente emulado no título deste post, que numa sociedade pluralista, democrática ou, como quis o festejado autor, aberta dos intérpretes da Constituição, os processos que embalem temas de relevância social demandam uma ampliação democrática dos debatedores: “(…) no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numersus clausus de intérpretes da Constituição”.[2]

Pois bem, o Novo CPC reverberou em diversos dos seus preceptivos a ampliação do debate, com maior vigor nas disposições relativas às decisões de caráter transcendentes, como é expressiva a recepção formal e o tratamento concedido aos amigos da corte.

Transcreve-se da cabeça do artigo 138 do Novo CPC: “Art. 138. O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a manifestação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de quinze dias da sua intimação”.

Verdade seja, o Novo CPC não reconhece confins instransponíveis ao instituto, abrindo passagem a participação do amicus curiae também em processos de índole subjetiva, res inter alios, quando, por exemplo, a controvérsia seja tingida de repercussão social.

Dito às claras e às secas, o Novo CPC pretende construir, pela participação do amigo da corte e, consequentemente, a ampliação do debate, uma decisão mais informada[3], assegurando ainda substancialidade ao contraditório[4].

Mas não é só.

O Novo CPC, em diversos outros comandos (v. G. artigos 925, § 2o, 947, 980, 1032, § 4oe 1035, §§ 2oe 4o), manteve-se poroso à participação de terceiros na construção de provimentos decisórios potencialmente extensíveis subjetivamente.

É assim na alteração de tese jurídica fixada em súmula ou em julgamento de casos repetitivos (artigo 925, § 2o), no incidente de arguição de inconstitucionalidade (artigo 947), no incidente de resolução de demandas repetitivas (artigo 980), no reconhecimento de repercussão geral no recurso extraordinário (artigo 1032, § 4o) e no regime dos recursos especiais e extraordinários repetitivos (artigo 1035, §§ 2o e 4o).

De fato, é um avanço considerável o Novo CPC ter assegurado a amplificação do debate na formação do provimento jurisdicional, atribuindo-lhe um colorido democrático próprio de uma sociedade aberta e pluralista.

Todavia, o Novo CPC poderia ter avançado ainda mais, disciplinando o tratamento, a forma de absorção e apropriação desses aportes, trazidos pelos novos participantes, no provimento jurisdicional.

O risco é a instrumentalização da participação de terceiros, para considerar que a mera abertura procedimental a sua manifestação é suficiente a pintar de democrático o provimento resultante.

Exige-se mais, a efetiva consideração do resultado dessa participação.

É imperiosa leitura abrangente do inciso IV do artigo 486 do Novo CPC, para que a decisão alcance os argumentos deduzidos por esses participantes, ou seja, não será fundamentada a decisão que não enfrente os argumentos trazidos pelos convidados a participar do debate.

Somente assim teremos a sociedade aberta de intérpretes participando da construção do provimento jurisdicional cujo tônus democrático se dá pela maior distensão argumentativa.

Pegando carona na turnê iniciada pelo post de Marcelo Pacheco Machado nesta coluna[5], podemos dizer que o Novo CPC prefere as bandas aos cantores solo.

* Texto publicado inicialmente no Portal Jota: http://jota.info/sociedade-abertaeconstrucao-provimento-jurisdicional


[1] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional: e teoria da constituição. 4. Ed. Coimbra: Almedina, 1997. p. 93.

[2] HÄRBELE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição; contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental”da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 2002. P. 13.

[3] “L’apparato di informazioni, dati fattuali ed argomentazioni giuridiche che l’amicus fornisce, infatti, consente alla corte di esaminare le questioni controverse in una prospettiva più ampia rispetto a quella delineata dalle parti e le permette di valutare in anticipo quali potrebbero essere gli effetti prodotti dalla decisione nei confronti di terzi. Sotto questo profilo, dunque, l’amicus curiae svolge l’importante funzione di procurare alla corte < un’adeguata conoscenza della realtà (sociale, econômica, ecc.) dalla quale nasce e nella quale vive un determinato “caso” >in modo che da tale conoscenza derivi una decisione più < informata >e quindi più < giusta >” (SILVESTRI, Elisabetta. L ́amicus curiae: uno strumento per la tutela degli interessi non rappresentati. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile n. 3. Milano: Giuffré, set. 1997, p. 693). Tradução livre: “O aparato de informações, argumentos factuais e jurídicos que o amicus fornece, de fato, permite que o tribunal examine as questões controversas em uma perspectiva mais ampla do que a descrita pelas partes e permite avaliar com antecedência quais seriam os efeitos produzido pela decisão em relação a terceiros. Nesse sentido, portanto, o amicus curiae tem a importante função de proporcionar ao Tribunal < um adequado conhecimento da realidade (social, economic, etc.) de onde nasceu e em que ele vive um determinado “caso” >para que a partir deste conhecimento venha uma decisão mais < informada >e, portanto, mais:”.

[4] BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. 2. Ed. Rev., atual. E ampl. São Paulo: Saraiva, 2008. P. 78/85.

[5] Disponível em: http://www.jota.info/cazuza-novo-cpc-contradicoes-ideologias-museusemusica-classica Acesso em: 13-jan-2014.