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Motivação e Contraditório: relação circular de complementaridade no Novo CPC*

Acaso nos fosse dado apontar os dispositivos que mais agradam no projeto de Novo Código de Processo Civil (Novo CPC), certamente um deles seria o inciso IV do § 1o do artigo 486.

À modo de cotejo, transcreve-se o preceptivo:

“Art. 486.

§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: (…). IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; (…).”.

Bom é dizer, conquanto vinculado formalmente ao artigo 486, que trata do arquétipo sentença, o § 1otem como destinatários todo e qualquer provimento jurisdicional, como a expressão “decisão judicial” no seu texto não deixa margem para dúvida.

De fato, o Novo CPC, como não poderia deixar de ser (CRFB/88, artigo 93, inciso IX), além de conferir ampla deferência à necessidade de motivação dos provimentos jurisdicionais (artigo 11 do Novo CPC), aumentou seu grau de exigência.

A bem da verdade, tal intensidade na fundamentação já se impunha por força do citado comando constitucional, pelo que o Novo CPC, propriamente, estratificou, de forma negativa, o que se entende por não fundamentado, permitindo daí extrair, por um raciocínio contrario sensu, a estrutura mínima de um provimento jurisdicional que se pretende fundamentado.

Propriamente, é da tradição do nosso processo civil exigir a fundamentação, podendo ser lembrados o artigo 232 do Regulamento nº 737, de 25 de novembro de 1850, o artigo 487 da Consolidação das Leis do Processo Civil — Consolidação de Ribas —, o artigo 280 do Código de Processo Civil de 1939 e o artigo 165 do Código de Processo Civil de 1973.

Ora bem, o provimento jurisdicional, por ser um ato de vontade, não de imposição de vontade arbitrária, para ser legítimo, enquanto ato estatal, tem na obrigatoriedade da fundamentação estofo fundamental e insuprimível.

Assim, o ato jurisdicional, como fruto de labor intelectivo, resultado de uma operação complexa[1] de ordem racional, histórica e crítica, que se entrecruzam, por vezes permeado de razões metalógicas (intuição)[2], deve expressar devidamente o porquê das conclusões quanto às questões de direito e de fato postas à apreciação do seu prolator.

Noutras palavras, independentemente da concepção sobre a natureza jurídica da motivação, como exposição histórica, como instrumento de comunicação e fonte de indícios, como discurso judicial ou como atividade crítico-cultural[3], o certo é que o provimento deve ser motivado[4].

Aliás, não se pode perder de perspectiva, a necessidade da fundamentação, a despeito de eventual e metajurídica dimensão subjetiva (convencer os litigantes[5]), permite o controle crítico do decisório, isto é, a análise crítica dos horizontes do julgado.

Mesmo porque, a motivação constitui pressuposto indispensável à sua impugnação, porquanto é impossível para um litigante preparar os fundamentos do recurso, ou mesmo avaliar a necessidade do início do procedimento recursal, prescindindo das razões do provimento do magistrado[6].

CARNELUTTI expressava: “Valor da motivação é muito grande em relação ao rendimento social do processo;”[7]

Noutro giro, descabe justificar menor rigor na motivação por apego a má compreensão da liberdade de convencimento do magistrado — persuasão racional (artigo 368 do Novo CPC)—, já que não consente com o arbítrio no silêncio quanto à formação do convencimento do magistrado.

Diversamente, justamente pelo magistrado não estar mais atrelado a esquemas fixos de apreciação da prova — prova legal —, impõe-se o dever de externar os motivos dos seus provimentos.[8]

Bem observa DINAMARCO, a liberdade na formação do convencimento pelo magistrado encontra limite, mesmo racional, na sua obrigação de apresentar a fundamentação[9].

É de se ressaltar, a obrigatoriedade da fundamentação dos provimentos é expressão concreta da garantia constitucional do devido processo legal (CFRB/88, artigo 5o, inciso LIV), sendo propriamente uma projeção deste no plano processual.

Ainda, não se pode olvidar, o dever de fundamentação dos provimentos jurisdicionais é um dos mais transcendentes do direito processual civil, projetando-se, e ao mesmo tempo sendo reflexo, do direito ao contraditório e a ampla defesa, do postulado da imparcialidade e da independência do magistrado, sendo, propriamente, consectário do Estado Democrático de Direito.

Demais disso, a exigência de fundamentação das decisões jurisdicionais não tem consequências meramente processuais (endoprocessuais), invadindo a própria seara da política judiciária, inserindo-se como fator de legitimação do exercício do poder jurisdicional (efeito extraprocessual).

Pois bem, retomando como referência o dispositivo que deu início ao texto, indispensável acentuar que o Novo CPC deixou estreme de dúvidas uma relação de complementaridade entre contraditório e a motivação, estabelecendo verdadeiro vazo comunicante entre os mesmos.

Sem dúvida, o Novo CPC importará em diversas releituras de institutos processuais conhecidos, verificando-se suas novas potencialidades, feições e conexões internas. A respeito do contraditório, por exemplo, Contraditório cooperando de Boa-Fé: por uma Nova Gramática do Processo (Disponível em: http://genjuridico.com.br/2015/01/15/contraditorio-cooperando-de-boa-fe-por-uma-nova-gramatica-do-processo/ Acesso em: 1-fev.2015).

Precisamente, o Novo CPC predispôs o contraditório e a fundamentação numa relação circular de complementaridade, em que o contraditório aparece como força motriz da fundamentação, passando posteriormente esta fundamentação a permitir e induzir o exercício daquele.

Como sufragado pelo Código, o artigo 10 do Novo CPC exige o contraditório prévio para o exame de toda e qualquer questão, ao passo que, consequentemente, realizado o contraditório, a fundamentação pressupõe o exame dos argumentos apresentados (artigo 496, § 1o, inciso IV, do Novo CPC). Na sequência do mecanismo processual, os referidos fundamentos apresentados serão o objeto dos recursos a serem apresentados, com o exercício crítico da fundamentação sob o signo do contraditório.

Certamente, tal relação do complementariedade vivifica tanto o contraditório, quanto e principalmente a fundamentação dos provimentos jurisdicionais, numa relação de causa e efeito contínua e reeditada durante todo o desdobramento do andamento do processo.

Verdade seja, nada mais salutar do que essa relação entre a fundamentação e o contraditório, tendo em vista que, como bem expressa o artigo 132 do Código de Processo Civil italiano, os provimentos jurisdicionais são pronunciados em nome do povo, no caso o brasileiro, pelo que devem ser fundamentadas para possibilitar seu controle, inclusive como ato estatal[10], por quisque de populo.

É o primado do Estado que se justifica.


[1] TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. Tradução Vitor de Paula Ramos. Marcial Pons: Madri, 2012. P. 271.

[2] TUCCI, José Rogério Cruz e. A motivação da sentença no processo civil. São Paulo: Saraiva, 1987. P. 14.

[3] TARUFFO, Michele. La motivación de la sentencia civil. Madrid: Editorial Trotta, 2011. P. 55 e seg.

[4] Ibidem, p. 11 e seg.

[5] TARUFFO, Uma simples verdade, op. cit., p. 273.

[6] “(…) um critério fundamental deve prevalecer, que é o do dever de motivação como elemento de limitação ao poder do juiz. É inerente à garantia constitucional do devido processo legal a oposição de limites ao poder estatal como um todo, que o juiz exerce sub specie jurisdictionis. Decidir sem fundamentar suficientemente é exercer o poder sem dar atenção às partes e aos órgãos superiores da Magistratura, a quem compete, pela via dos recursos que lhe chegam, examinar os motivos expostos e se pronunciar sobre eles – seja para confirmá-los, seja para repudiá-los. E isso, como chega a ser intuitivo, não só viola as exigências de motivação postas pela lei e pela Constituição, como ainda desconsidera as exigências do due process of law.” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 4. Ed. Revisão e atualização de Antônio Rulli Neto. São Paulo: Malheiros, 2001. V. 2, p. 1080).

[7] CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil: da estrutura do processo. Traduzido por Hiltomar Martins de Oliveira. São Paulo: Classicbook, 2001. V. 4, p. 907.

[8] “a liberdade do juiz no desempenho da atividade jurisdicional, assentada na certeza moral, encontra exatamente na fundamentação o seu preço.” (TUCCI, op. Cit., p. 104). “A necessidade de motivação é indeclinável. Cresce ela à medida que se dá ao juiz qualquer parcela, e mais, de livre apreciação” (MIRANDA, Pontes. Comentários ao código de processo civil: tomo II (arts. 46 a 153). 3. Ed. Rev. E aument. Atualização legislativa de Sérgio Bermudes. Rio de Janeiro: Forense, 1995. P. 410).

[9] “No Estado-de-direito, em que o poder se autolimita e seu exercício só se considera legítimo quando fiel a regras procedimentais adequadas (Niklas Luhmann, Elio Fazzalari), é natural que à liberdade de formar livremente seu convencimento no processo corresponda, para o juiz, o dever de motivar suas decisões.” (DINAMARCO, op. Cit., p. 1077).

[10] TARUFFO, La motivación de la sentencia civil, op. Cit., p. 360.

*Texto publicado inicialmente no portal Gen Jurídico: http://genjuridico.com.br/2015/02/04/novo-cpc-muda-motivacaoecontraditorio/