O Superior Tribunal de Justiça, por sua Quarta Turma, em maioria de votos, no Recurso Especial no 1051270, do Rio Grande do Sul, relator Ministro Luis Felipe Salomão, negando-lhe provimento, placitou a tese do adimplemento substancial (substantial performance).
Conquanto o julgamento tenha sido amplamente noticiado[1] e, por que não, festejado, de fato a matéria já tinha sido debatida, ainda que incidentalmente, pelo Superior Tribunal de Justiça, no ano de 1995, no Recurso Especial no 76.362-MT, relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar.
Aliás, no Recurso Especial no 272.739-MG, o preclaro Ministro Ruy Rosado de Aguiar, enfrentando diretamente a tese do adimplemento substancial, exarou acórdão cuja ementa ficou assim consubstanciada:
“ALIENAÇÃO FÍDUCIÁRIA. Busca e apreensão. Falta da última prestação. Adimplemento substancial.
O cumprimento do contrato de financiamento, com a falta apenas da última prestação, não autoriza o credor a lançar mão da ação de busca e apreensão, em lugar da cobrança da parcela faltante.
O adimplemento substancial do contrato pelo devedor não autoriza ao credor a propositura de ação para a extinção do contrato, salvo se demonstrada a perda do interesse na continuidade da execução, que não é o caso.
Na espécie, ainda houve a consignação judicial do valor da última parcela.
Não atende à exigência da boa-fé objetiva a atitude do credor que desconhece esses fatos e promove a busca e apreensão, com pedido liminar de reintegração de posse.
Recurso não conhecido.”
Pois bem, adimplemento nada mais é do que o cumprimento integral da obrigação pelo devedor, com a consequente satisfação do direito do credor, sendo que, em contrapartida, o inadimplemento é o descumprimento do devedor somada a insatisfação do credor.
A rapidez e a singeleza do raciocínio mal acomoda a complexa e intrincada realidade, que rivaliza com esses conceitos fechados e adredemente preparados, exigindo do intérprete um repertório mais amplo de soluções.
Isso porque, a consequência pura do inadimplemento é a alternativa do credor, dito prejudicado, de rescindir o contrato ou exigir o seu cumprimento, com aplicação das perdas e danos (Código Civil, artigo 475[2]).
Todavia, nada justifica, principalmente em relações continuadas, em que o adimplemento contratual tenha se realizado em percentual elevado, acaso pudéssemos quantificar o cumprimento, que o credor simplesmente rescinda o pacto.
Por assim dizer, percorrido quase todo o iter de cumprimento contratual descabe dar ré ou mesmo realizar o retorno, sendo mais profícua a aplicação de medidas profiláticas ao remanescente e residual descompasso contratual.
Nesta hipótese, atestar-se-ia o adimplemento substancial, isto é: “um adimplemento tão próximo ao resultado final, que, tendo-se em vista a conduta das partes, exclui-se o direito de resolução, permitindo tão somente o pedido de indenização” (COUTO E SILVA).
Sem sombra de dúvida, tal solução encontra abrigo no princípio da boa-fé objetiva (Código Civil, artigo 422[3]), dessumindo-se da própria inteligência do artigo 413[4] do Código Civil, no que permite ao magistrado reduzir a multa fixada contratualmente quando o inadimplemento for parcial.
Mesmo porque, esse tipo de inadimplemento acabava por ser relevado ao argumento ou diferenciações entre obrigações principais e acessórias, elementos essenciais e acidentais do negócio jurídico.
Verdade seja, melhor tratar essas hipóteses, ligadas por veio comum, carimbadas pelas mesmas singularidades, sob o timbre de adimplemento substancial, estabelecendo uniformidade no trato da matéria.
Portanto, sempre que o devedor quede minimamente no adimplemento de sua prestação, ou seja, ocorrendo adimplemento substancial, é de se afastar a possibilidade de rescisão contratual fundado no inadimplemento insignificante.
Eis o ponto. O adimplemento da obrigação pelo devedor, ainda que não integral, mas de forma substancial, afasta a alegação de descumprimento contratual suficiente a rescisão contratual. A falta contratual, nesta perspectiva, somente justificará procedimento para seu cumprimento coativo.
O tema tem inúmeras virtualidades e consequências práticas. Por exemplo, o adimplemento substancial (logo, não total) desautoriza e esvazia a exceção de contrato não cumprido. Até porque, essa exceção sempre esteve atrelada a equivalência, inclusive no grau de importância, entre as prestações[5].
Agora, não se pode olvidar, a aplicação do instituto deve ser reservada aos casos em que o devedor atue de boa-fé, numa atmosfera de probidade, desde que o descompasso contratual não seja propositado, mas sim ligado a circunstâncias alheias a sua vontade.
Bom dizer, é a aplicação da boa-fé, postulado transversal do direito, cuja eficácia asséptica expunge eventuais nódoas contratuais.
“Recomendada pelo direito, a boa-fé é também por ele premiada, no sentido de que dentro de certos limites pode suprir as deficiências de forma do ato. Quem mostrar querer conformar-se com os seus preceitos pode ser tratado, dentro de certos limites, como se de fato com eles se houvesse conformado mesmo que fisicamente assim não tenha acontecido. A boa vontade sob este aspecto faz milagres no campo do direito; e assim se compreende que seja esta uma das zonas em que o direito mais se aproxima da moral; se a poena merae cogitationis está excluída do direito, o mesmo não acontece com o praemium. (…). A paz aos homens de boa vontade aparece assim também no direito.” (CARNELUTTI).
Por certo, entendimento diverso esmaeceria ainda mais o já combalido princípio do pacta sunt servanda, igualmente importante aos confins do direito.
Enfim, em tempos de revisão do Código de Proteção e Defesa ao Consumidor seria uma salutar inovação a inserção expressa do instituto naquele diploma legislativo.
[1] Disponível em: http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=102902&tmp.area_anterior=44&tmp.argumento_pesquisa=social Acesso em: 2-set-11.
[2] “A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos”.
[3] “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.
[4] “A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio”.
[5] “Nos contratos bilaterais, o credor também é devedor, de modo que, se o devedor, que é credor, não quer adimplir, o devedor, que é credor, se pode recusar a adimplir. A exceção de contrato inadimplido somente pode ser admissível se entre a prestação do promitente e a contraprestação do promissário ao promitente há equivalência. Se não há toma-lá-dá-ca, ou se não está vencida a dívida do promissário, não há pensar-se em exceção non adimpleti contractus” (PONTES DE MIRANDA).